terça-feira, 2 de novembro de 2021

Intensidade e força na poesia de Lindolf Bell 📚🌻✨

O poeta Lindolf Bell (Timbó - SC, 02/11/1938 - Blumenau, SC - 10/12/1998), atual e inspirador

Há 83 anos nascia Lindolf Bell, em Timbó, cidade conhecida como a "Pérola do Vale", na região do Vale do Itajaí, capital catarinense do cicloturismo.

Bem cedo, Lindolf Bell descobriu sua habilidade com as palavras e a força de sua poesia. Líder do Movimento Catequese Poética nos anos 60 e 70 e levou a poesia às praças e fábricas, na região de Blumenau - SC e outras cidades do Brasil e também, a outros países. Foi casado com a artista plástica Elke Hering e tiveram três filhos: Pedro, Rafaela e Eduardo.

Na década de 90, numa atividade do Grupo Teatral Boca de Siri, na antiga ETFSC (hoje IFSC) assisti a uma palestra do poeta. O grupo apresentou um poema em forma de peça teatral, era algo sobre a Paz, foi lindo! Em seguida, Lindolf Bell falou sobre sua trajetória, experiências e poesias. Foi emocionante! Seus olhos brilhavam com uma vitalidade e entusiasmo contagiantes! A força de suas palavras e de sua presença era algo fantástico!

Seus poemas são maravilhosos! Talvez o mais conhecido seja "O Poema do Andarilho". Nele encontramos a famosa frase "Menor do que meu sonho não posso ser"! 🌺

Compartilho o poema em sua homenagem. Sua trajetória deixou um legado para a poesia catarinense e brasileira e inspira poetas de todos os tempos!


O POEMA DO ANDARILHO

                                                                    Para Nélida Piñon

I

Menor que meu sonho

não posso ser


Mil identidades secretas.

Mil sobras, sombras, mil dias.

Todas palavras e tudo.

Barco de ambiguidade,

sôfregas palavras.

De todas contradições, desencontros,

dos contrários de mim,

andarilho.

 Da flecha de várias pontas, direções.

Dos outros seres

que também andarilham.


Pois menor que meu sonho

não posso ser


Andarilho

de ervas sutis

crescidas de noites luzes

becos latinos frêmitos andes ilhas.

Andarilho

de santos falidos, feridos

de vaidade.

Dos frutos da segurança vã,

vã beleza de repente solidão.

Feitiços, laços, encantamentos.

Prodígios, tordesilhas, ressentimentos.

Andarilho de perder pele, asa e uso,

mariposa da lua difusa do amanhecer.

Andarilho

de paisagens precárias do sentimento

guardado a sete chaves,

não fotografável,

nem desvendável em câmaras escuras, secretas torturas,

ou à luz de teus olhos surpresos, presos

nos meus olhos, ilhas.

Pois menor que meu sonho

não posso ser


Andarilho.

De insignificâncias magníficas colheitas do nada.

De tudo que ninguém se lembra

nem nunca escreveu.

De uma nuvem veloz reflexo de outra nuvem

andarilha nuvem do sul

de onde vem a luz,

andarilho.


Crescem em mim as palavras sensações mais estranhas

e andarilham.

Arrulho de palavra pousada ave

sobre um minuto de trégua e milagre do tempo

quando o sol se põe atrás do horizonte inquieto

do dicionário

e da dúvida:

                            armadilha.

na saliva na garganta

na palavra escrita primavera

na capa de um caderno antigo

do Grupo Escolar Polidoro Santiago de Timbó

andarilho de linhas esquecidas tortas velhas trilhas

datas de nascimento e burlescos aniversários

andarilho andorinha

em ziguezague na festa

                                                        na face de Deus.

Aos trancos e barrancos, andarilho.

De trincos e garimpos, andarilho.

Andarilho de desafios, desafinos.

De socos recebidos e raros revides,

de atonias em atrofias, andarilho.

Andarilho.

Na diferença palpável da volúpia.

De assédios, impertinências, ideologias.

De recalques,

decalques, vídeos, celulóides, fitas

gravadas da liberdade,

gravatas, contatos, contratos,

andarilho.

Pois menor que meu sonho

não posso ser.

II

Empoleirado em minha gaiola de ineficiência,

andarilho.

Longe de grandes e confortáveis salas

da subserviência, andarilho.

Transitivo, substantivo, adjetivo.

Solto na correnteza do medo, da instabilidade

de tudo, na multidão de afetos.

Eu, claro enigma: sete palmos de terra,

         sagrado sopro de todo o sentimento.

Eu, quebrado espelho d’água de Narciso

         e fogo de Orfeu entre a paixão

         e o definitivo tempo.

Eu estranho a maioria das vezes

na própria terra do poema

onde me sedimento, acidento,

me desencaminho, me aninho,

me enovelo em trama de pouco, em menos,

em quase nada

e mesmo assim andarilho.

Pois menor que meu sonho

não posso ser

Eu matéria recalcitrante do futuro.

Eu a nação inteira sob o impacto do sonho.

Eu dissecando a morte sobre a mesa da manhã.

Eu onipresente e diluído na dor geral.

III

Fechei meu expediente da comoção fácil.

Corretores da insegurança:

deixai a sala de frente da precariedade.

Atravesso jejuns, desdéns,

indecisões, hospedarias do tempo.

A luz acesa de hotéis bordéis pobres e mal cheirosos

suicídios alheios pleonasmos.


Atravesso anúncios

e antenas.

Os homens apressados do século XX

e sua matéria veloz de sobrevivência atravesso.

A rua que antes atravessei atravesso outra vez

e a praça onde contornei a liberdade

da palavra

                          e da liberdade.

                                                              volto a atravessar.

Pois menor que meu sonho

não posso ser


Atravesso cartazes de cinema

                                                      ofertas do dia de supermercados.

Estádios de futebol, sirenes que falam

de morte inventada em subterrâneos sombrios.

Atravesso lianas, liames, hienas, reconciliações,

pecados capitais e provincianos ais.

Atravesso manchetes

de maré cheia, crescente de vazantes mares,

absurdas frases e as mais absurdas caligrafias,

atravesso sentidos sem sentido nenhum, de repente,

onde me decifro e hieróglifo.


Vácuos, opalas, opalinas, vícios.

Mesuras, curvaturas, arbítrios, alienações.

Tudo atravesso.

Atravesso a casa dos ventos uivantes.

O assombro, a censura,

a navalha na carne.


Atravesso o crime perfeito, utopias,

as profecias todas do país das falas guaranis,

                                                                                  guaranás.

Pois menor que meu sonho

não posso ser

IV

Não afino com instrumento

que se toca à distância

Não proponho propostas de diluição

Não sou agente do vazio

nem de asas que o homem não tem


Se acreditais em sistemas de elocubração

Na gema brilhante do nada

Em recheio de palavras e sofisticados relatórios

Se acreditais em clara batida

nas panelas obscuras da prepotência

Se quereis teorias de mim

Se me quereis longe da paixão:

tirai o cavalo da chuva

Pois menor que meu sonho

não posso ser.

V

Passa o tempo.

Como passa, passou o tempo,

oh! frase feita,

inútil consolo e alívio.


Passo este tempo que me passa.

Passo pontos de interrogação, helespontos,

helespantos.

Passo a ponte, o poente.

Deliberadamente passo

mas sem pressa, passo

a passo.

Passo os fusos horários

e passeio entre o sonho

e as palavras.


Também entre as obscenas por decreto.


Pois menor que meu sonho

não posso ser.


VI

Atravesso compêndios, currículos, apostilas

de silêncio

e minha sombra pisada

por outra sombra

também feita de tudo

                                    e nada

Atravesso simulacros

e arranco o lacre da palavra

Pois menor que meu sonho

não posso ser


atravesso o avesso

E meu barco de travessias

é a palavra terra

cercada de água por todos os lados


Pois menor que meu sonho

não posso ser


Estou do lado de lá da ilha

Aqui disponho de mim

e conheço meu próprio acesso

Aqui conheço a face inversa da luz

onde me extravio

e não cessarei jamais


Pois menor que meu sonho

não posso ser.

Da obra "O CÓDIGO DAS ÁGUAS" (Prêmio Associação Paulista dos Críticos de Arte em 1984)

Lembro ainda que em Timbó, sua cidade natal, encontra-se o Museu Casa do Poeta “Lindolf Bell”, para quem quiser conhecer  sua vida e obra um pouco mais de perto.

Sua poesia está viva e é atual. Recomendo apreciar, descobrir e redescobrir a poesia de Linfolf Bell! 🌷

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