domingo, 21 de novembro de 2021

Torto Arado: fenômeno literário e o Dia da Consciência Negra no Brasil

Torto Arado é um romance brasileiro do escritor Itamar Vieira Júnior, publicado no Brasil em 2019, vencedor do Prêmio Leya em 2018, em Portugal, e também, dos prêmios Oceanos e Jabuti, em 2020.

Neste livro, encontramos a história de uma comunidade quilombola no interior da Bahia e o retrato da vida dura dos descendentes do povo negro escravizado no Brasil. Mostra que, mesmo com a abolição da escravatura, as injustiças e a desigualdade social continuaram e ainda existem. A partir da história de duas irmãs, seus familiares e demais integrantes daquele quilombo, o autor nos apresenta a vida precária, sem direito à terra, moradia e condições dignas de vida. Em alguns momentos, descreve situações análogas à escravidão.


Na obra, encontramos a força do povo negro a partir do relato de três pontos de vista femininos. A trama torna-se ainda mais interessante por apresentar as tradições religiosas afrobrasileiras, rituais e festas populares. Está presente o senso de pertencimento, a solidariedade e o acolhimento entre os integrantes dos quilombos e das comunidades mais pobres.

Ao mesmo tempo em que apresenta uma realidade distante para tantos que vivem nas cidades grandes, nos conecta com imagens de memórias da infância, caso tenhamos contato com familiares que trabalham e ou já trabalharam na agricultura. 

A linguagem utilizada é bem realista, cheia de força e nos chama a atenção a forma como o autor consegue se colocar no lugar das personagens femininas com maestria, sendo que cada personagem tem características de personalidade e formas de expressão bem distintas. Podemos perceber um estilo que lembra Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Gabriel Garcia Marques; talvez, leituras de formação do autor.

O autor, servidor público no INCRA desde 2013, conheceu o interior do Brasil bem de perto, com suas discrepâncias e desigualdades sociais presentes nas comunidades esquecidas ou mesmo desconhecidas para muitos.

Torto Arado  foi estruturado em três partes: I - Fio de Corte, II - Torto Arado e III - Rio de Sangue. No Brasil, foi publicado pela Editora Todavia e tem 264 páginas. Traduzido para vários idiomas, como por exemplo, espanhol, francês e russo, leva a realidade da vida nos quilombos aos quatro cantos.

Ao ler e apreciar cada uma das três partes do livro, temos a impressão de estarmos ouvindo o relato das personagens principais, direto dos seus lugares de fala.

Não vou antecipar mais detalhes sobre o que encontramos no livro, mas deixo aqui algumas questões para reflexão e instigar a leitura:

🟠 De que forma os primeiros descendentes do povo negro escravizado e libertos à época da Abolição da Escravatura conseguiam trabalho e morada no interior do Sertão Nordestino?

🟠 Os quilombolas, nessas comunidades agrícolas, possuíam direitos trabalhistas, incluindo aposentadoria?

🟠 Seus costumes e tradições religiosas eram respeitados?

E algumas reflexões para o presente e o porvir:

🟠 Diante de tantas injustiças e dívidas sociais, o que podemos fazer hoje para reparar e corrigir essas injustiças?

🟠 Qual a importância e o papel de livros como o Torto Arado  para proporcionar essas reflexões e para o Dia da Consciência Negra no Brasil?

Há muito o que ser feito nesse sentido e, talvez, leve ainda bastante tempo para que as injustiças sociais e o desrespeito vivenciado pelo povo negro ao longo dos séculos seja reparado. Muitas das violências cometidas, creio que podemos considerar  danos irreparáveis. No entanto, obras literárias de autores negros, campanhas como o dia da Consciência Negra no Brasil - 20 de Novembro, que denunciem as injustiças, mostrem a realidade e promovam a conscientização a esse respeito, projetos sociais e políticas públicas de acesso à educação, emprego, justiça e igualdade social são urgentes e necessárias.

Para conhecer um pouco mais sobre a trajetória do autor e o processo de escrita dessa obra, entrevista com Itamar Vieira Júnior do Programa Roda Viva:

https://www.youtube.com/watch?v=Mu9iUc2UHBQ&t=2594s

Li este livro entre agosto e setembro deste ano, em conjunto com um grupo de colegas de trabalho, numa atividade de Leitura Compartilhada, em que trocamos ideias e impressões sobre a obra ao longo de três encontros virtuais. Foi uma experiência maravilhosa, com discussões e reflexões muito ricas sobre os temas abordados .

Penso que este livro seja um clássico reconhecido em sua época. Recomendo!

Boa leitura! 📚✨

...

Torto Arado, Itamar Vieira Júnior. Editora Todavia, 2019.

https://todavialivros.com.br/livros/torto-arado

Prêmio Leya 2018, Portugal

https://www.leya.com/pt/gca/areas-de-actividade/premio-leya/vencedor-2018/

Prêmio Oceanos de Literatura em Língua Portuguesa em 2020

https://associacaooceanos.pt/premio-2020/

Prêmio Jabuti: Melhor Romance Literário em 2020

https://www.premiojabuti.com.br/premiados-por-edicao/premiacao/?ano=2020

Outras obras do autor: 

Dias. Caramurê Publicações, 2012.

A oração do carrasco. Editora Mondrongo, 2017.

Doramar ou a odisseia: Histórias. Editora Todavia, 2021

Itamar Vieira Júnior nasceu em Salvador - Bahia, em 1979. É geógrafo, doutor em Estudos Étnicos Africanos pela Universidade Federal da Bahia - UFBA.

sábado, 13 de novembro de 2021

A literatura fantástica de Italo Calvino

Italo Calvino nasceu em Santiago de las Vegas, próximo a Havana - Cuba, em 15 de outubro de 1923. Os pais, cientistas italianos, estavam numa viagem de trabalho e ficaram no local para o nascimento do filho. Viveu a maior parte de sua vida na Itália, exceto esse breve período em Cuba e também, treze  anos em Paris. Em 1964 casou-se com a tradutora argentina  Esther Judith Singer e tiveram uma filha, Giovanna. Calvino faleceu em Siena - Itália, em 19 de setembro de 1985.

Formado em Letras, participou da resistência ao fascismo durante a Segunda Guerra Mundial. Após esse período, trabalhou como consultor literário na Editora Einaudi, em Turim. 

Em sua escrita, predomina o gênero da Literatura Fantástica, com vários elementos que desafiam a nossa noção de realidade e, ao mesmo tempo, permitem o distanciamento necessário para visualizarmos o mundo sob outra perspectiva.

Participou do grupo literário OuLiPo, formado por escritores e matemáticos, fundado em 1960, na França. A nomenclatura vem do acrônimo de Ouvrois de littérature potencielle, que quer dizer algo equivalente à "ateliê de literatura potencial".

Calvino é uma figura central na literatura do século XX e sua obra é riquíssima em descrições de mundos imaginários, realidades surpreendentes, paradoxos, metáforas às diferentes sociedades humanas, frases diretas ou mais elaboras, instigantes, tudo isso numa linguagem que transita entre a fábula e a poesia.

Desde a primeira leitura que fiz de um livro do Calvino, gostei bastante e sempre estou de olho no próximo livro dele que não li ainda... Marcovaldo, por exemplo, encontrei num sebo em Florianópolis. É aquele tipo de leitura que promove alguma transformação interior. Sempre mudamos algo, em nós mesmos ou na forma como vemos o mundo, após a leitura de algum livro do Calvino. Podemos dizer que toda leitura gera alguma mudança, isso é certo. No entanto, Calvino, em sua literatura fantástica, coloca nossos paradigmas em suspenso, em outra perspectiva.

A seguir, cito algumas de suas obras que mais gostei de ler. Procuro não antecipar muitos detalhes, para que os leitores façam suas descobertas e tenham suas próprias impressões a partir de suas experiências e leituras anteriores. Adianto que, para ler Calvino, é preciso parar o que se está fazendo, dedicar-se àquela leitura e saborear as palavras, ler as frases novamente, imaginar os cenários com a riqueza de detalhes que ele oferece... e, aproveitar para repensar o mundo em que vivemos. 

Vale citar que todos os livros que li ou estou lendo desse autor foram publicados pela Editora Companhia das Letras.

Na década de 50, escreveu a trilogia Os Nossos Antepassados: O Visconde Partido ao Meio (1952), O Barão nas Árvores (1957) e O Cavaleiro Inexistente (1959). Os livros não têm relação entre si, a não ser por se passarem em cenários medievais, na época dos cavaleiros de armaduras, castelos e tudo mais.

O Visconde Partido ao Meio, Il visconte dimezzato, publicado na Itália em 1952. Narra a história do Visconde Medardo di Terralba, partido ao meio numa batalha, por uma bala de canhão. Regatado pelos médicos, sobreviveu e ficou pairando pelos reinos da região com suas duas metades, uma boa e a outra, má. Podemos considerar uma metáfora para os nossos aspectos "luz" e "sombra", como diria Carl Gustav Jung, ou então, uma forma de compreender algumas características do que conhecemos como transtorno bipolar, devido aos comportamentos extremos do personagem principal, Medardo. Ao longo da narrativa, o autor nos alerta sobre a necessidade de integração dos vários aspectos da nossa psique. 


O Barão nas Árvores, I barone rampante, publicado na Itália em 1957. Nesta obra, conta a história do garoto Cosme, que decide viver no alto das árvores após um desentendimento com seu pai. Ao longo do livro, o autor descreve as peripécias, angústias e aventuras do morador das copas das árvores e a interação com os moradores da terra firme, seus vizinhos. Uma das interpretações possíveis é pensarmos sobre os mundos paralelos que criamos quando o contexto em que vivemos fica por demais pesado e difícil de enfrentar. Aqueles mundos imaginários que nos salvam tantas vezes.


O Cavaleiro Inexistente, Il cavaliere inesistente, publicado na Itália em 1959. A narrativa apresenta as aventuras de Agilulfo, cavaleiro de armadura alva e reluzente, porém vazia. Este cavaleiro, de comportamento exemplar, soldado dedicado, obsessivo no cumprimento das regras e tarefas apresentadas, desajeitado para expressar emoções, na verdade, não existe. Na trama, podemos encontrar também uma mulher guerreira, o rei Carlos Magno, um escudeiro de comportamentos estranhos, a freira que conta a história, entre outros personagens. Esta narrativa permite várias reflexões, na medida em que descreve os personagens e seus comportamentos.


As Cidades Invisíveis, Le città invisibili, publicado na Itália em 1972. É considerado a Magnun Opus do escritor Italo Calvino. Através de diálogos entre o viajante Marco Polo e o imperador Kublai Kan, descreve com maestria, de forma breve e poética, uma série de cidades, todas com nomes de mulheres. Através dessas descrições, criamos um mundo de cidades fantásticas, imaginamos situações ideais e até utópicas. A leitura desse livro é um excelente exercício para estudantes de Arquitetura e todos aqueles que gostam de pensar sobre novos mundos possíveis.


Porque ler os Clássicos, Perché leggere i classici, publicado na Itália em 1990. Neste ensaio, Calvino reflete sobre o que considera ser um livro clássico e nos conta sobre os clássicos que leu durante sua trajetória de leituras, quais foram os seus livros de formação, a importância desse tipo de leitura e, sobre os clássicos que talvez nunca cheguemos a ler, afinal, há tantos clássicos da literatura, nos quase duzentos países existentes.

No início do livro, após discorrer sobre os vários motivos pelos quais considera importante a leitura dos clássicos, Calvino afirma: " A única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos." Mas claro, o conteúdo do livro vai bem além.

 Cada um de nós já leu alguns dos clássicos da literatura mundial ou ainda vai lê-los, porém, não é possível que consigamos ler todos os clássicos de todas as épocas e países. No entanto, mesmo assim, com essa lista interminável de livros para ler numa vida, a  leitura dos clássicos é essencial. Cabe a cada um construir sua lista personalizada.



Livros de Italo Calvino / leituras em andamento:

Marcovaldo, Marcovaldo ovvero Le stagioni in città, publicado na Itália em 1960. Através de vinte contos independentes entre si, a respeito de Marcovaldo, um trabalhador e sua relação com a natureza, ou o que restou dela nas cidades.


Se um viajante numa noite de inverno, Se una notte d'inverno un viaggiatore, publicado na Itália em 1979. Nesta obra, considerada um hiper-romance, o narrador interage com o leitor de forma que consegue nos colocar dentro da narrativa e nos sentimos um personagem ativo do livro. A literatura dentro da literatura. Em alguns momentos, desconcertante...


Esperando para ser lido:

Fábulas Italianas, Fiabe Italiane, publicado na Itália em 1957. A Editora Einaudi encomendou ao célebre escritor que escrevesse uma coletânea de fábulas presentes em toda as regiões da Itália, que pudesse se equiparar às francesas e alemãs de Perrault e dos irmãos Grimm. Na obra, para todas as idades, Calvino recria cenários antigos, provenientes da tradição oral, mesclado a uma visão contemporânea.


Outras obras do autor

Ficção:

A trilha dos ninhos de aranha, 1947.

A especulação imobiliária, 1957.

O dia de um escrutinador, 1963.

As cosmicômicas, 1963.

O castelo dos destinos cruzados, 1969.

Os amores difíceis, 1970.

Palomar, 1983.

Sob o sol-jaguar. 1988.

O caminho de San Giovanni, 1990.

Perde quem fica zangado primeiro (infantil), 1988.

Um general na biblioteca, 1993.

Ensaios:

Una pietra sopra. Discorsi di letteratura e società, tradução livre: Uma pedra acima: Discursos de literatura e sociedade, 1980.

Seis propostas para o próximo milênio, Lezioni americane. Sei proposte per il prossimo millenio, 1985.

Um otimista na América, 1959 - 1960.

Obs.: ao pesquisar sobre Calvino, observamos que algumas de suas obras ainda não foram traduzidas no Brasil.


Em julho deste ano foi inaugurada uma sala dedicada à Italo Calvino, na Biblioteca Nacional de Roma, na Itália, conforme a reportagem:

 https://agcult.it/a/42031/2021-07-15/biblioteca-nazionale-centrale-di-roma-il-28-luglio-inaugurazione-della-sala-dedicata-a-italo-calvino

Calvino, um escritor instigante, lúcido e imaginativo deixou uma vasta obra como legado; leitura própria para os nossos tempos!

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Intensidade e força na poesia de Lindolf Bell 📚🌻✨

O poeta Lindolf Bell (Timbó - SC, 02/11/1938 - Blumenau, SC - 10/12/1998), atual e inspirador

Há 83 anos nascia Lindolf Bell, em Timbó, cidade conhecida como a "Pérola do Vale", na região do Vale do Itajaí, capital catarinense do cicloturismo.

Bem cedo, Lindolf Bell descobriu sua habilidade com as palavras e a força de sua poesia. Líder do Movimento Catequese Poética nos anos 60 e 70 e levou a poesia às praças e fábricas, na região de Blumenau - SC e outras cidades do Brasil e também, a outros países. Foi casado com a artista plástica Elke Hering e tiveram três filhos: Pedro, Rafaela e Eduardo.

Na década de 90, numa atividade do Grupo Teatral Boca de Siri, na antiga ETFSC (hoje IFSC) assisti a uma palestra do poeta. O grupo apresentou um poema em forma de peça teatral, era algo sobre a Paz, foi lindo! Em seguida, Lindolf Bell falou sobre sua trajetória, experiências e poesias. Foi emocionante! Seus olhos brilhavam com uma vitalidade e entusiasmo contagiantes! A força de suas palavras e de sua presença era algo fantástico!

Seus poemas são maravilhosos! Talvez o mais conhecido seja "O Poema do Andarilho". Nele encontramos a famosa frase "Menor do que meu sonho não posso ser"! 🌺

Compartilho o poema em sua homenagem. Sua trajetória deixou um legado para a poesia catarinense e brasileira e inspira poetas de todos os tempos!


O POEMA DO ANDARILHO

                                                                    Para Nélida Piñon

I

Menor que meu sonho

não posso ser


Mil identidades secretas.

Mil sobras, sombras, mil dias.

Todas palavras e tudo.

Barco de ambiguidade,

sôfregas palavras.

De todas contradições, desencontros,

dos contrários de mim,

andarilho.

 Da flecha de várias pontas, direções.

Dos outros seres

que também andarilham.


Pois menor que meu sonho

não posso ser


Andarilho

de ervas sutis

crescidas de noites luzes

becos latinos frêmitos andes ilhas.

Andarilho

de santos falidos, feridos

de vaidade.

Dos frutos da segurança vã,

vã beleza de repente solidão.

Feitiços, laços, encantamentos.

Prodígios, tordesilhas, ressentimentos.

Andarilho de perder pele, asa e uso,

mariposa da lua difusa do amanhecer.

Andarilho

de paisagens precárias do sentimento

guardado a sete chaves,

não fotografável,

nem desvendável em câmaras escuras, secretas torturas,

ou à luz de teus olhos surpresos, presos

nos meus olhos, ilhas.

Pois menor que meu sonho

não posso ser


Andarilho.

De insignificâncias magníficas colheitas do nada.

De tudo que ninguém se lembra

nem nunca escreveu.

De uma nuvem veloz reflexo de outra nuvem

andarilha nuvem do sul

de onde vem a luz,

andarilho.


Crescem em mim as palavras sensações mais estranhas

e andarilham.

Arrulho de palavra pousada ave

sobre um minuto de trégua e milagre do tempo

quando o sol se põe atrás do horizonte inquieto

do dicionário

e da dúvida:

                            armadilha.

na saliva na garganta

na palavra escrita primavera

na capa de um caderno antigo

do Grupo Escolar Polidoro Santiago de Timbó

andarilho de linhas esquecidas tortas velhas trilhas

datas de nascimento e burlescos aniversários

andarilho andorinha

em ziguezague na festa

                                                        na face de Deus.

Aos trancos e barrancos, andarilho.

De trincos e garimpos, andarilho.

Andarilho de desafios, desafinos.

De socos recebidos e raros revides,

de atonias em atrofias, andarilho.

Andarilho.

Na diferença palpável da volúpia.

De assédios, impertinências, ideologias.

De recalques,

decalques, vídeos, celulóides, fitas

gravadas da liberdade,

gravatas, contatos, contratos,

andarilho.

Pois menor que meu sonho

não posso ser.

II

Empoleirado em minha gaiola de ineficiência,

andarilho.

Longe de grandes e confortáveis salas

da subserviência, andarilho.

Transitivo, substantivo, adjetivo.

Solto na correnteza do medo, da instabilidade

de tudo, na multidão de afetos.

Eu, claro enigma: sete palmos de terra,

         sagrado sopro de todo o sentimento.

Eu, quebrado espelho d’água de Narciso

         e fogo de Orfeu entre a paixão

         e o definitivo tempo.

Eu estranho a maioria das vezes

na própria terra do poema

onde me sedimento, acidento,

me desencaminho, me aninho,

me enovelo em trama de pouco, em menos,

em quase nada

e mesmo assim andarilho.

Pois menor que meu sonho

não posso ser

Eu matéria recalcitrante do futuro.

Eu a nação inteira sob o impacto do sonho.

Eu dissecando a morte sobre a mesa da manhã.

Eu onipresente e diluído na dor geral.

III

Fechei meu expediente da comoção fácil.

Corretores da insegurança:

deixai a sala de frente da precariedade.

Atravesso jejuns, desdéns,

indecisões, hospedarias do tempo.

A luz acesa de hotéis bordéis pobres e mal cheirosos

suicídios alheios pleonasmos.


Atravesso anúncios

e antenas.

Os homens apressados do século XX

e sua matéria veloz de sobrevivência atravesso.

A rua que antes atravessei atravesso outra vez

e a praça onde contornei a liberdade

da palavra

                          e da liberdade.

                                                              volto a atravessar.

Pois menor que meu sonho

não posso ser


Atravesso cartazes de cinema

                                                      ofertas do dia de supermercados.

Estádios de futebol, sirenes que falam

de morte inventada em subterrâneos sombrios.

Atravesso lianas, liames, hienas, reconciliações,

pecados capitais e provincianos ais.

Atravesso manchetes

de maré cheia, crescente de vazantes mares,

absurdas frases e as mais absurdas caligrafias,

atravesso sentidos sem sentido nenhum, de repente,

onde me decifro e hieróglifo.


Vácuos, opalas, opalinas, vícios.

Mesuras, curvaturas, arbítrios, alienações.

Tudo atravesso.

Atravesso a casa dos ventos uivantes.

O assombro, a censura,

a navalha na carne.


Atravesso o crime perfeito, utopias,

as profecias todas do país das falas guaranis,

                                                                                  guaranás.

Pois menor que meu sonho

não posso ser

IV

Não afino com instrumento

que se toca à distância

Não proponho propostas de diluição

Não sou agente do vazio

nem de asas que o homem não tem


Se acreditais em sistemas de elocubração

Na gema brilhante do nada

Em recheio de palavras e sofisticados relatórios

Se acreditais em clara batida

nas panelas obscuras da prepotência

Se quereis teorias de mim

Se me quereis longe da paixão:

tirai o cavalo da chuva

Pois menor que meu sonho

não posso ser.

V

Passa o tempo.

Como passa, passou o tempo,

oh! frase feita,

inútil consolo e alívio.


Passo este tempo que me passa.

Passo pontos de interrogação, helespontos,

helespantos.

Passo a ponte, o poente.

Deliberadamente passo

mas sem pressa, passo

a passo.

Passo os fusos horários

e passeio entre o sonho

e as palavras.


Também entre as obscenas por decreto.


Pois menor que meu sonho

não posso ser.


VI

Atravesso compêndios, currículos, apostilas

de silêncio

e minha sombra pisada

por outra sombra

também feita de tudo

                                    e nada

Atravesso simulacros

e arranco o lacre da palavra

Pois menor que meu sonho

não posso ser


atravesso o avesso

E meu barco de travessias

é a palavra terra

cercada de água por todos os lados


Pois menor que meu sonho

não posso ser


Estou do lado de lá da ilha

Aqui disponho de mim

e conheço meu próprio acesso

Aqui conheço a face inversa da luz

onde me extravio

e não cessarei jamais


Pois menor que meu sonho

não posso ser.

Da obra "O CÓDIGO DAS ÁGUAS" (Prêmio Associação Paulista dos Críticos de Arte em 1984)

Lembro ainda que em Timbó, sua cidade natal, encontra-se o Museu Casa do Poeta “Lindolf Bell”, para quem quiser conhecer  sua vida e obra um pouco mais de perto.

Sua poesia está viva e é atual. Recomendo apreciar, descobrir e redescobrir a poesia de Linfolf Bell! 🌷

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