quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Ficção Científica e os primórdios das obras distópicas

 Nós, Yevguêni Zamiátin (1884 - 1937) e os primórdios da Ficção Científica Distópica


 

Esta obra é uma Ficção Distópica que inspirou clássicos, como por exemplo, 1984, Admirável Mundo Novo, Laranja Mecânica e Fahrenheit 451, entre outras.

Escrita entre 1920 e 1921, é uma das grandes obras da pós Revolução Russa (1917). O título só foi publicado no seu país de origem 67 anos depois. Os próprios russos tiveram acesso ao conteúdo do livro através da publicação em outros países.

A trama se passa num futuro distante, em torno de 1000 anos à frente. Após um cenário de guerras, o que restou da população, ou sua maior parte, reuniu-se ao redor de um Estado Único, totalitário, com o mínimo de liberdade, sem que a maior parte das pessoas se dessem conta disso. Aliás, apesar da falta de liberdade, a população apoia o Estado Único como se fosse algo favorável àquela sociedade.

Nesse cenário, as pessoas quase não pensam mais por si próprias; são controladas em suas rotinas de trabalho e vida pessoal. Praticamente não há o livre pensar pois a lavagem cerebral continuada pelo único veículo de comunicação fez o seu papel: promover a adoração ao Estado Único e seu governante.

As gerações se sucedem, uma após a outra, e já não pensam mais sobre sua condição. A falta de pensamento próprio e direitos individuais faz com que as pessoas sejam tratadas e chamadas por números, a vestirem-se de modo uniformizado e a perceberem-se como um difuso “nós”.

Praticamente não existe privacidade. Os habitantes dessa sociedade vivem em casas de vidro transparentes e quase tudo o que fazem ou deixam de fazer é do conhecimento do sistema autocrático. Até mesmo as relações mais íntimas acontecem com hora marcada, com a permissão de fecharem as cortinas do quarto durante aquela hora, a qual chamavam de Horas Particulares. 

E quem ousaria pensar de forma crítica e consciente sobre sua realidade? Demasiado perigoso ou improvável, considerando o alto nível de controle da população por parte do governo totalitário e nível de domínio de suas vidas pela mão pesada do Benfeitor. Exceto para um. Exceto para alguns. 

O protagonista é um engenheiro e participa de um projeto ousado: a construção da Integral, uma espécie de nave espacial para dominar outros mundos. O objetivo é, especificamente, dominar os habitantes de outros planetas “que talvez ainda se encontrem em estado primitivo de liberdade.” (p. 15)

Enquanto ele escreve uma espécie de diário para a posteridade em elogio ao sistema, observa o surgir de insights a respeito de sua própria realidade, ao mesmo tempo em que, o encontro com uma mulher misteriosa (talvez portadora do fruto proibido do conhecimento), suscita-o a questionar sua condição de vida. A semente da reflexão vai desenvolvendo-se e, ao poucos, vê sua vida em risco. Até então, literalmente não sonhava, dormindo ou acordado. Idolatrava o ditador e considerava-se feliz e agradecido.

As tentativas de driblar o sistema não são fáceis, considerando-se o alto grau de controle sobre as rotinas de vida pessoal e laborativa dos habitantes. “Não seria preciso dizer que entre nós, tanto nisso como em tudo o mais, não há lugar para casualidades, nada de inesperado pode ter vez.” (p. 156)

O autor nos mostra ao longo da obra que naquela sociedade, para que a população se mantenha obediente e sob o controle do governante maior, as emoções devem ser proibidas e negadas. Dessa forma, no início, o protagonista apresenta uma linguagem mais robotizada, mecânica e formal. Ao entrar em contato com as emoções, passa a sonhar, refletir sobre sua condição de vida e sobre o sistema ao qual está inserido, e com isso, a linguagem na qual conta a história, passa a ser mais afetiva e até mesmo um pouco poética, ainda que trate mais das suas angústias ao final do livro.

Penso ainda que é possível fazermos um paralelo com a Alegoria da Caverna de Platão, em que um grupo de pessoas que vivia presa numa caverna percebia a realidade a partir da projeção do que acontecia fora dela, refletida em sombras numa parede dessa caverna. No livro "Nós", a população desse futuro distante acessa a realidade a partir do que o governo autocrático permite que chegue ao povo, com uma grande distorção. Nessa breve apresentação podemos perceber o quanto é importante o conhecimento da Literatura e da Filosofia para compreendermos a nossa realidade interna e o mundo em que vivemos.

Sem mais spoilers, recomendo a leitura, tanto pelo seu valor histórico, na linha do tempo das obras de ficção científica distópica, quanto para que possamos observar até que ponto já vivemos algumas condições de controle descritas no livro e também, alertar quanto à importância e a necessidade do livre pensar para que as pessoas possam expressar seus potenciais criativos e garantir os direitos relacionados à dignidade da condição humana.


Nós, Yevguêni Zamiátin.
Editora 34
Coleção Leste, Narrativas da Revolução 
Publicado em SP, 2017, 100 anos da Revolução Russa

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