Cada verso da poesia de Manoel de Barros tem muito a nos dizer. São frases certeiras no nosso coração e na nossa alma... Adentram uma esfera quase sem palavras para explicar ou para traduzir o efeito que geram em nosso interior. Elas chegam de mansinho e nos abraçam, nos envolvem com ternura e carinho.
"Poesia é voar fora da asa." O livro das ignorãças
Ele nos lembra, de modo sutil, delicado e singelo, que a vida é agora e precisa estar conectada à natureza, ou melhor, somos a natureza também. Nesse texto, procuro mesclar as reflexões com versos e trechos de poemas do grande mestre da poesia brasileira.
"Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos." O livro sobre o nada, 1996.
Boa parte das pessoas no mundo ocidental, ao qual fazemos parte, imersas na lógica capitalista do consumo e do lucro, vivem numa roda vida alucinada: cumprir tarefas, horários, metas inalcançáveis... ou ter lucros maiores a cada mês, a cada semana, a cada dia... E assim passam os dias, os meses, os anos... E a vida vai escapando pelas nossas mãos.
Nesse ritmo acelerado, nessa falta de conexão consigo e com os demais, a vida segue e o tempo de vida passa pela janela, a cada amanhecer em que não paramos para ouvir os pássaros, sentir a brisa logo cedo ou desfrutar os primeiros raios de sol a iluminar e aquecer o dia. Alguns de seus poemas ilustram bem sua visão de mundo a tentativa de encontrar uma via alternativa que acesse a própria vida.
O menino que carregava água na peneira (um trecho)
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até uma pedra dar flor.
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!
Neste sentido, a poesia de Manoel de Barros é terapêutica. Não sei se ele tinha noção do alcance de seus versos, quanto à forma como utiliza as palavras, num aconchego que dá gosto. Ainda assim, nos presenteou com seus versos tão aprazíveis.
"A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos." O livro sobre o nada, 1996.
A poesia tem um lugar central em sua vida e obra. Através de palavras simples, despretensiosas e muito bem encadeadas, nos toca e ajuda a organizar nossas emoções e ideias, nos conectar com as coisas desimportantes, aquelas que realmente importam.
"No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras."
Manoel de Barros - O livro das ignorãças, 1993.
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E até mesmo quando Manoel de Barros se aproxima dos fatos mais pesados da nossa realidade, o faz de uma perspectiva comovente e com sementes de esperança, como neste poema da obra Meu quintal é maior do que o mundo:
Os girassóis de Van Gogh
Hoje eu vi
Soldados cantando por estradas de sangue
Frescura de manhãs em olhos de crianças
Mulheres mastigando as esperanças mortas
Hoje eu vi homens ao crepúsculo Recebendo o amor no peito.
Hoje eu vi homens recebendo a guerra
Recebendo o pranto como balas no peito.
E, como a dor me abaixasse a cabeça,
Eu vi os girassóis ardentes de Van Gogh.
Manoel de Barros ou Manoel Wenceslau de Leite Barros nasceu em Cuiabá - MT e passou a infância na fazenda da família no Pantanal. (19/12/1916, Cuiabá - MT - 13/112014, Campo Grande - MS). A partir dos treze anos, mudou-se para Campo Grande - MS, onde viveu a maior parte de sua vida.
Publicou seu primeiro livro em 1937 - Poesia concebida sem pecados. Formou-se em Direito no Rio de Janeiro em 1941. Entre os vários prêmios que recebeu, destaque para os Prêmios Jabuti de 1989, com a obra "O guardador de águas", e em 2002, com a obra "O fazedor de amanhecer".
Autor de mais de trinta livros, conciliava simplicidade e intelectualidade com maestria, foi um erudito e um gigante da poesia brasileira e mundial. Contemporâneo, Carlos Drummond de Andrade afirmava que Manoel de Barros era o maior poeta vivo do Brasil. Em Portugal, é um dos poetas brasileiros mais lidos. No entanto, parecia não se importar com esses títulos.
Escultura de Manoel de Barros em Campo Grande - MS, inaugurada no dia em que completaria 101 anos, em 2017.
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Desejo que em algum momento, do dia ou da noite, você possa presentear-se com os versos de Manoel de Barros, trazer passarinhos, borboletas e amanheceres para a sua vida! 📚🌻🦋✨